Empresas recebem mais denúncias sobre assédio e discriminação do que corrupção
Os canais de denúncias internos das empresas têm recebido mais alegações sobre temas comportamentais, como assédio sexual, moral e discriminação do que notificações contra atos de corrupção. Dados de empresas como Petrobras, Vale, Novonor e BRF demonstram essa tendência. Especialistas afirmam que ter um canal de denúncias corporativo é fundamental para que os colaboradores tenham um meio confidencial e seguro para relatar problemas de má conduta.
Com a aprovação da Lei 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção, mais companhias passaram a contar com canais internos de denúncia. A legislação considera essa prática uma medida importante de compliance, ou seja, de conformidade, para que relatos de irregularidades possam ser feitos e usados como atenuantes em caso de sanções administrativas por corrupção.
No ano de sanção da lei, era registrado o ápice da operação Lava Jato e a população protestava nas ruas contra a corrupção. Atualmente, uma década depois, com o fim da operação, os canais de denúncia nas corporações adquiriram uma nova relevância.
Assuntos relacionados a problemas interpessoais configuraram 62% dos registros de reclamações no canal de denúncias da mineradora Vale em 2022. Já na Petrobras, as denúncias recebidas com mais frequência desde 2018 são ligadas à “violência no trabalho” e caracterizadas como toda prática, comportamento ou ameaça que provoque ou tenha potencial de provocar prejuízo econômico, sexual ou psicológico.
Considerada uma das maiores companhias de alimentos em nível internacional, no caso da BRF, a maior parte das denúncias reportadas entre 2019 e o ano passado também está relacionada à temática comportamental. Na Novonor, ações consideradas “más condutas” de comportamento somaram 67% dos relatos julgados procedentes em 2022.
Segundo uma pesquisa publicada pela Association of Certified Fraud Examiners, empresas que contam com canal de denúncias descobrem mais fraudes (46%) do que corporações que recebem queixas por canais aleatórios (30%). O levantamento mostra ainda que negócios que dispõem de canais de denúncia são capazes de identificar problemas mais rapidamente e que sofrem menos perdas financeiras do que empresas que não possuem.
Evolução de debates sobre ética, integridade e respeito ajuda a explicar tendência
Uma das razões que ajudam a esclarecer o porquê dessa tendência, conforme avaliação do sócio da divisão de Risco da Deloitte, Eduardo Rocha, é a evolução de valores sociais em relação à integridade, ética e respeito. Para ele, as empresas que não cumprirem essas demandas correm o risco de ficar fora do mercado. As informações foram prestadas à imprensa.
Também em entrevista e seguindo uma linha parecida de raciocínio, o diretor de Auditoria e Conformidade da Vale, Denis Cuenca, reconhece um reflexo nos canais de denúncia provocado por um avanço nos debates sobre inclusão, equidade, diversidade e ESG – sigla para Environmental, Social, and Governance, um conjunto de critérios ambientais, sociais e de governança corporativa.
Além disso, o fato de o convívio humano fazer parte do cotidiano diário das corporações e, consequentemente, aumentar as chances de acontecerem mais desvios de comportamento do que casos de corrupção e fraude também é apontado como motivo. Os especialistas acreditam que, como poucas pessoas têm acesso e lidam com o dinheiro das empresas, as oportunidades de cometer atos fraudulentos são menores.
Rocha avalia ainda que esse cenário foi impulsionado pelo amadurecimento das plataformas de denúncia em termos de avanço tecnológico. A garantia de anonimato, por exemplo, junto ao acompanhamento da reclamação e a gestão feita por terceiros contribuíram para que as pessoas confiassem mais nesses canais.
Comunicação e transparência são essenciais, mas há desafios
Apesar dos avanços sociais e tecnológicos, um estudo da plataforma SafeSpace em parceria com o Instituto Qualibest mostrou que 27% dos profissionais brasileiros não têm conhecimento sobre como denunciar um caso de má conduta no trabalho. Foram ouvidas 682 pessoas na pesquisa, sendo 50% homens e 50% mulheres.
O levantamento revelou também que 20% dos trabalhadores entrevistados atuam em organizações que não oferecem canal de denúncias. Outros 19% não sabem se a empresa possui um canal de comunicação direcionado especificamente para que os colaboradores reportem problemas.
Conforme observou a CEO da SafeSpace, Rafaela Frankenthal, em entrevista à imprensa, os dados mostram que ainda existe um espaço considerável para as empresas estruturarem um programa eficiente de integridade e ética. Isso porque um número expressivo de organizações não possuem nem um canal de denúncias operante e que as pessoas saibam acessar, o que, segundo ela, seria o mínimo.
A CEO explica também que há companhias com essas iniciativas somente com o intuito de cumprir requisitos de conformidade. Contudo, o cenário está sendo modificado, dando lugar a ambientes em que os profissionais estão exigindo das empresas responsabilidade social e não apenas requisitos.
Frankenthal chama a atenção para a necessidade de formar um comitê de ética treinado para tomar decisões em casos que envolvam o alto escalão, por exemplo, além de potenciais conflitos de interesses em empresas com mais de 50 funcionários.
Ela alerta também que, de modo geral, a comunicação e a transparência são cruciais, pois é preciso acompanhar os relatos. Dentro do limite da confidencialidade das informações obtidas, é importante que as pessoas saibam o que acontece e estejam cientes de que as denúncias relatadas no canal são levadas a sério e adiante.