Advogado fala sobre perseguição, assédio moral e misoginia no Campus da USP de Pirassununga
O Dr. Eder Francelino Araújo, advogado militante no Estado de Goiás/GO, com uma banca advocatícia no município de Goiânia, conversou no Jornal da Tarde, nesta segunda-feira, 10, do Jorna da Tarde, da Rádio Piracema FM 93,1, de Pirassununga/SP.
A professora Cristiane Soares da Silva Araújo, docente do Departamento de Nutrição e Produção Animal (VNP) da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) no Câmpus Fernando Costa, em Pirassununga, sustenta que vem sendo alvo de perseguição, assédio moral e misoginia na unidade. Os episódios ocorrem pelo menos desde 2019, mas se intensificaram a partir de 2021.
A situação chegou ao ápice no final de 2023, quando um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), ainda em andamento, foi instaurado contra a professora, com base em supostas irregularidades atribuídas a ela na gestão do Laboratório de Pesquisa em Aves (LPA), que a docente coordenava desde 2013. Em novembro de 2021, Cristiane Araújo foi destituída da coordenação do laboratório.
Ocorrências de assédio na unidade foram relatadas por docentes que testemunharam no PAD, e os(as) próprios(as) estudantes da FMVZ se manifestaram a respeito da existência de “um ambiente abusivo” na faculdade, como se verá adiante.
Uma característica do VNP é que o departamento vem sendo comandado praticamente por apenas três professores nos últimos 14 anos. Esse “triunvirato” é composto por Francisco Palma Rennó, Marcos Veiga dos Santos e Júlio César Balieiro.
Marcos Veiga, atual vice-diretor da FMVZ, foi chefe do departamento de 2016 a 2020 (já havia ocupado o cargo também de 2006 a 2008) e vice-chefe de 2012 a 2016. Entre outros cargos, também já coordenou a pós-graduação e presidiu a Comissão de Pesquisa e Inovação da unidade.
Rennó, por sua vez, praticamente não sai do comando do VNP desde 2010, quando assumiu como vice-chefe. De 2012 a 2016, foi chefe do departamento, depois vice outra vez de 2018 a 2020 e novamente chefe a partir de 2020, com mandato encerrado recentemente. É o atual vice-presidente do Conselho Gestor do Câmpus de Pirassununga e presidente da Comissão de Pesquisa e Inovação da FMVZ.
Júlio Balieiro tem menor participação no comando do departamento. Entre outros cargos, já foi coordenador de pós-graduação e vice-chefe nas duas recentes gestões de Rennó, e atualmente é o chefe do VNP. Foi ele também que assumiu a coordenação do LPA após a destituição da professora Cristiane Araújo.
Coordenador da PG pediu novo parecer para indeferir credenciamento
O primeiro episódio relatado pela professora se deu em decorrência do resultado da eleição para a Comissão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação do VNP na gestão 2018-2020. Na ocasião, a maior parte dos nomes que eram recorrentemente eleitos ficou de fora da comissão.
Em 2019, houve eleição de representantes da categoria de professor(a) doutor(a) para o Conselho Departamental. Os(as) docentes definiram que votariam nos nomes que haviam manifestado interesse em representar a categoria. No entanto, a professora Cristiane e outra docente não foram eleitas.
Na avaliação de Cristiane, o fato de que docentes que sempre integraram a comissão do programa terem ficado de fora levou a atos de retaliação na eleição do Conselho Departamental e fez com que o colegiado ficasse sem representação feminina. Naquela época, o VNP tinha catorze docentes, sendo apenas três mulheres, ou 21,4% do quadro.
Também em 2019, a professora solicitou credenciamento como docente plena, para orientação em nível de doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Produção Animal. O docente parecerista emitiu posição favorável ao credenciamento.
No entanto, Julio Balieiro, então coordenador do programa, solicitou a mudança do parecer para negar o credenciamento. O parecerista não concordou, pois não havia motivo para a alteração.
Balieiro requereu então que Marcos Veiga emitisse novo parecer, indeferindo o pedido. De acordo com a professora, a mudança no parecer se deu com o objetivo de prejudicar a sua carreira.
Resolução da Reitoria estabelece compartilhamento de instalações do câmpus
O que a professora define como seu “pior martírio” teve início no dia 8/11/2021, quando foi chamada para uma reunião por Francisco Rennó, então chefe do departamento. Além dele, também estavam presentes Júlio Balieiro, então vice-chefe, Marcos Veiga, que à época não estava na direção do VNP, e uma secretária.
Cristiane Araújo relata que na reunião foi informada de que o departamento havia recebido “denúncias de irregularidades nas atividades” no LPA, que ela coordenava, sendo-lhe dirigida uma série de perguntas com o objetivo de colocá-la em situação constrangedora.
Embora o teor das supostas denúncias não tenha sido apresentado, Rennó disse que seria necessário que a professora prestasse esclarecimentos sobre os seguintes pontos: ingerência do professor Lúcio Araújo — docente da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), também localizada no câmpus de Pirassununga, e marido de Cristiane — nas atividades do LPA; ingerência de uma aluna sobre as atividades do laboratório; registros de movimentação de animais e balanço financeiro das atividades no LPA; registros das pesquisas desenvolvidas em 2020 e 2021 e previsão de pesquisas a serem desenvolvidas em 2022.
A professora entregou um relatório no curto prazo concedido pela chefia. Duas semanas depois da primeira reunião, em novo encontro na presença do “triunvirato”, no dia 24/11, Cristiane foi informada de que o relatório não seria aceito, entre outras razões, por utilizar como justificativa para o compartilhamento das atividades do laboratório pelo professor Lúcio Araújo a Resolução 4.109, de 1994.
A resolução, assinada pelo então reitor Flávio Fava de Moraes, determina que “a Câmara Climática e o Aviário Experimental serão utilizados pelas duas Unidades, embora incorporados às instalações da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia”. Outras instalações não especificamente citadas na Resolução “continuarão a pertencer à Prefeitura do campus administrativo de Pirassununga, para utilização comum” entre FMVZ e FZEA (grifos nossos).
Em ocasiões posteriores, Rennó disse entender que a Resolução 4.109 já estaria superada pela existência de uma deliberação do Conselho Gestor do Câmpus sobre o assunto.
De fato, um acordo sobre a utilização das dependências teria ocorrido em reunião do Conselho Gestor em 2007, a partir de entendimentos entre os então diretores da FMVZ e da FZEA. Porém, como se sabe, uma deliberação de instância administrativa local não pode se sobrepor a uma resolução do Gabinete do Reitor jamais revogada e, portanto, em plena vigência.
Rennó afirmou ainda que o relatório de Cristiane não apresentava as movimentações financeiras referentes aos experimentos e aos excedentes de pesquisa dos anos de 2020 e 2021 e deixava “transparecer” que as ações no LPA decorriam em função das atividades do professor Lúcio Araújo, da FZEA.
O então chefe do VNP informou que as denúncias seriam encaminhadas à Diretoria da unidade para que fossem tomadas “as devidas providências” e que não haveria outra oportunidade de esclarecer as dúvidas apresentadas por ele, uma vez que o relatório da professora Cristiane não seria aceito. Na ocasião, a docente foi comunicada de seu afastamento da coordenação do LPA.
“Naquele momento eu tinha sido interrogada, julgada e condenada, sem que nada tivesse sido provado e sem que eu tivesse conhecimento do conteúdo das ‘denúncias’ que foram apresentadas”, considera a professora.
Entre as consequências dessa medida, a docente relata o cerceamento ao seu trabalho como pesquisadora. Um dos exemplos disso é o fato de, em dezembro daquele ano, ter enviado um protocolo de pesquisa solicitando que a unidade recebesse uma professora da Universidade de Buenos Aires para o desenvolvimento de um programa de pós-doutorado, sem que tenha obtido resposta da chefia do VNP.
Unidade requereu claro docente para a área da professora
A sensação de que está em andamento um jogo de cartas marcadas em relação à professora Cristiane é reforçada pela solicitação de um claro docente na área de avicultura da unidade.
Reunião da Congregação realizada no último dia 17/4 referendou a solicitação do VNP para reposição de um claro, decorrente da aposentadoria de um professor, para a área de Nutrição Animal e Avicultura. Na justificativa dada pelo departamento para a solicitação, foi utilizada a carga horária de disciplinas que estão sob a responsabilidade da professora Cristiane.
Vale ressaltar que o VNP possui demandas em áreas prioritárias para a formação de médicos(as) veterinários(as) e que não são oferecidas, como a de aquicultura. Já a disciplina de Produção de Búfalos, Caprinos e Ovinos tem a sua prioridade discutida desde 2012, sem que haja docente especialista como responsável.
A recente decisão indicou a necessidade de contratação imediata de mais um(a) docente na área de avicultura, embora nenhuma área de especialidade do departamento possua dois docentes que trabalhem numa mesma disciplina.
Desde a transferência da gestão do LPA para Júlio Balieiro, a professora Cristiane tem tido dificuldades para ministrar aulas práticas no curso de Medicina Veterinária da FMVZ, uma vez que só pode ter acesso às instalações após solicitar autorização a ele.
Além disso, diz a docente, há poucos animais disponíveis para as aulas, às vezes nenhum, e os entraves para a aquisição de alimentação para as aves têm prejudicado a formação dos(as) alunos(as) de graduação nessa área.
A professora relata ainda que as instalações do LPA se encontram praticamente vazias, o que prejudica o desenvolvimento das suas pesquisas e o oferecimento de estágios, atividades didáticas complementares e práticas profissionalizantes.
Outro episódio que demonstra o tratamento persecutório dispensado à docente ocorreu em fevereiro de 2022. Logo no início de suas férias, Cristiane recebeu um e-mail de Balieiro comunicando que ele passaria a ocupar a sala de alunos do Laboratório de Avicultura. Cristiane questionou a legalidade daquela mudança e se ela havia sido debatida no Conselho Departamental. Balieiro respondeu que havia decidido realizar a mudança em conversa com Rennó, então chefe do departamento, para que ficasse mais próximo do LPA.
A professora solicitou a Balieiro que aguardasse o seu retorno das férias para que retirasse equipamentos e materiais, mas o novo coordenador do LPA respondeu que havia necessidade urgente de utilizar o espaço.
De acordo com Cristiane, desde então a sala permanece praticamente sem utilização. “O principal objetivo [da medida] era a expulsão de estagiários, pós-graduandos e pessoas em prática profissionalizante que utilizavam aquele espaço como sala de estudos”, afirma.
Comissão de Ética da USP apontou elementos de assédio e sugeriu sindicância
Desde a reunião para a qual foi convocada no final de 2021, a professora tem tido a sua vida pessoal e profissional totalmente exposta no câmpus de Pirassununga e também perante a comunidade científica, já que vem sendo impedida de desenvolver adequadamente suas atividades, antes mesmo de ter tido a oportunidade de apresentar a sua defesa e do processo contra ela ser concluído.
Em fevereiro de 2022, Cristiane Araújo encaminhou à Ouvidoria da USP uma denúncia contra os professores Francisco Rennó, Júlio Balieiro e Marcos Veiga, na qual detalha os episódios de assédio moral aos quais foi submetida no ambiente de trabalho.
A Ouvidoria encaminhou o material à Comissão de Ética da USP, que concluiu, em parecer emitido em fevereiro de 2023, um ano depois do envio da denúncia, que pelo “conjunto de ocorrências” podia-se “inferir algum tipo de assédio dos professores titulares sobre ela, bem mais jovem e mulher”.
“Em vista dos fatos”, prossegue o parecer, “há elementos que embasariam um assédio sistemático dos professores titulares sobre uma professora doutora em movimentos que parecem cercear o crescimento profissional da mesma”.
Porém, prossegue a Comissão de Ética, a professora “falha em documentar corretamente sua gestão frente ao laboratório que é compartilhado entre a FMVZ e a FZEA, e que este ainda conta com forte atuação de seu marido, Prof. Titular Lúcio Francelino Araújo, da FZEA, na gestão e solicitação de serviços sobre os servidores da FMVZ, fato que aumenta as tensões entre os dois lados”.
O parecer sugere a abertura de uma sindicância pela Diretoria da FMVZ para a apuração dos fatos, afirmando que a inexistência de denúncia configura “a ação da Chefia como um assédio sobre a professora”. “Na confirmação da denúncia, e na apuração dos fatos, poderá ser verificada a legitimidade das ações tomadas pela denunciante”, prossegue o parecer.
Docente só teve acesso ao conteúdo das denúncias depois de mais de um ano e meio
Em setembro de 2022, a professora foi convocada a prestar esclarecimentos perante uma Comissão de Apuração Preliminar formada na unidade. A convocação ocorreu apenas dois dias antes da oitiva. Cristiane ainda não tinha conhecimento do teor das denúncias formuladas contra ela e relata que em vários momentos “os questionamentos foram totalmente parciais e tendenciosos, de forma a me pressionar para que eu confessasse algo que não tinha praticado”.
Um ano depois, em agosto de 2023, a professora recebeu a citação para comparecer perante a Comissão Processante, já no âmbito da tramitação do PAD instaurado contra ela. Só então, vinte meses depois do encaminhamento inicial das denúncias de supostas irregularidades feitas por funcionários do LPA, a docente teve conhecimento de quem eram os denunciantes e de quais eram as suas alegações.
“Desde o início deste processo nunca tive acesso, até agosto de 2023, às acusações que me foram feitas. Além disso, tem sido dado continuidade a um processo de perseguição, misoginia e de abuso moral por aqueles que deveriam dar o exemplo de administração e de relacionamento com os seus liderados”, diz a professora.
“Durante todo este período, minha saúde mental foi comprometida, pois houve a necessidade de acompanhamento psiquiátrico e uso constante de medicações que me auxiliassem a suportar o ambiente degradante de trabalho, afetando até mesmo a minha vida pessoal e familiar. Tenho me sentido perseguida, desestimulada e desmotivada de exercer o meu trabalho de forma adequada, em função de tudo o que tenho vivido”, afirma.
Comissão de Apuração destaca qualidade acadêmica de Cristiane e Lúcio
O relatório da Comissão para Apuração Preliminar constituída na FMVZ destaca a qualidade acadêmica do trabalho da professora Cristiane e do professor Lúcio. O texto conclui que “o número de estagiários sob supervisão” da professora Cristiane “é expressivo, pois 64 estagiários frequentaram o setor entre 2018 e 2021”. O relatório aponta que a produção científica de Cristiane e Lúcio é relevante, e que “outro indicador de qualificação dos docentes” é o fato de que ambos foram contemplados com bolsas de produtividade em pesquisa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Cristiane e Lúcio “possuem produção científica relevante e desempenham papel meritório na formação de recursos humanos na USP”, prossegue o relatório.
“A liderança em pesquisa no LPA é exercida por Lúcio Francelino Araújo, porque Cristiane Soares da Silva Araújo desempenha, eminentemente, o papel de coautora de Lúcio Francelino Araújo em artigos científicos e coordena a minoria dos projetos lá desenvolvidos. Assim, resta claro que, no âmbito acadêmico, o LPA vem contribuindo tanto para o desempenho do docente da FZEA-USP quando da docente do FMVZ-USP, proporcionando-lhes adequado campo de trabalho, o que é refletido pelo fato de ambos serem outorgados [sic] com bolsa de produtividade em pesquisa pelo CNPq”, diz o documento.
Docente fala em assédio moral como “ferramenta de gestão” no departamento
O assédio moral “é uma ferramenta de gestão administrativa” no VNP, diz o professor Paulo Rodrigues, docente da USP desde 1997. Acrescenta: “Temos inúmeros casos de professores e servidores muito pressionados, e o fato é que existe despreparo profissional de nossos gestores, apesar do enorme esforço da universidade de enfrentar o problema do assédio”.
Algumas gestões da Diretoria da FMVZ deixaram de tomar providências em relação às questões referentes ao assédio nos vários departamentos da unidade, e com isso os problemas só se agravam, disse Rodrigues ao Informativo Adusp Online. O docente foi testemunha de defesa da professora Cristiane no PAD.
No seu caso, relata o professor, as perseguições começaram a se dar no ano de 2007, quando se manifestou em defesa de uma docente que vinha sendo “humilhada e passando por todo tipo de constrangimento”. A professora, afirma, desenvolveu síndrome do pânico e se aposentou assim que possível. “Como comecei a me envolver com a defesa de pessoas que eram assediadas e perseguidas, eles viraram as baterias na minha direção”, diz.
Rodrigues assinala que os episódios de assédio podem se dar até em reuniões — por exemplo, um(a) docente que está lendo determinadas normas para construir um argumento pode ser interrompido(a) com comentários do tipo: “Você está lendo. Mas você sabe ler?”.
A consequência, explica, é que tanto no seu departamento como em outros esse tipo de prática tem afetado psicologicamente os docentes. “Isso obviamente prejudica as aulas e os estudantes já se manifestaram, exigindo que a faculdade tomasse providências para punir os assediadores”, diz.
O professor Rodrigues também menciona a existência de pressões para a cessão de “contrapartidas” pelo uso de laboratórios ou realização de projetos, o que considera “aético, uma vez que os laboratórios geridos no âmbito do VNP são construídos com recursos públicos externos ao departamento”. Ele deixou de fazer parcerias com a iniciativa privada em projetos de pesquisa científica, conta, devido ao que qualifica de avidez pelas “contrapartidas” no departamento.
Paulo Rodrigues considera que a principal forma de punição de docentes não alinhados(as) às práticas estabelecidas pelo grupo que controla o departamento é privá-los(as) de ferramentas de trabalho essenciais para o ensino, a pesquisa e a extensão.
Um episódio ocorrido há dez anos ilustra as declarações de Rodrigues sobre as perseguições e represálias no VNP. Em 2014, um caso denunciado pelo professor foi noticiado pelo jornalista Maurício Tuffani na Folha de S. Paulo. No ano anterior, o docente havia comunicado à Comissão de Ética da USP que sofria retaliações por ter colaborado na denúncia de uma fraude científica. Rodrigues afirmou que Rennó, então chefe do departamento, estaria ameaçando destituí-lo da coordenação do Laboratório de Nutrição Animal e Bromatologia, função que Rodrigues de fato deixou em novembro de 2014.
A fraude que Rodrigues ajudou a denunciar, ao lado de um grupo de professores da Universidade Federal do Tocantins, envolvia um pós-doutorando que se intitulava coautor de artigos científicos de cuja elaboração não havia de fato participado, e que era supervisionado por Francisco Rennó. A Comissão de Ética da USP comprovou a fraude e a comunicou à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que por sua vez concluiu que “a ocorrência dos fatos alegados é inquestionável”. O pós-doutorando sofreu consequências, mas respingaram retaliações para Paulo Rodrigues.
Testemunha da defesa se declara perseguida e assediada
Outra testemunha da defesa da professora Cristiane no PAD relatou, no processo, episódios que classifica como assédio e perseguição.
Uma das razões para essa situação tem a ver com um e-mail recebido de Rennó no último dia 4/1. No texto, o então chefe do VNP pede informações sobre os valores a serem recolhidos para a FMVZ por conta de “renda industrial resultante de atividades com pesquisas com animais”.
Rennó informa que “em breve” será finalizada e publicada a portaria “que regulamentará, de forma definitiva, a questão” — no caso, a destinação desses valores. A portaria à qual o professor se refere, ainda não publicada, “disciplina o recolhimento de recursos de excedentes de pesquisa” dos laboratórios do VNP.
No e-mail, Rennó cita as atribuições que cabem ao chefe de departamento, conforme o artigo 46 do Regimento Geral da USP, para justificar suas atitudes. “Desta forma, não é necessária nenhuma portaria para que a Chefia do Departamento questione docentes sobre quaisquer informações relativas a atividades nas dependências do Departamento, a qualquer tempo”, escreveu Rennó no e-mail.
Prossegue o então chefe: “Ainda, caso as informações solicitadas não sejam de pronto atendidas, existem diversos instrumentos na Universidade que dão amparo e força a esta solicitação. Veja o ocorrido no Laboratório de Pesquisa em Aves” (grifo nosso), diz Rennó na mensagem, numa frase que pode ser interpretada como um aviso ou advertência de que sanções como as aplicadas à professora Cristiane podem ser dirigidas a qualquer docente do departamento.
Formulário pede discriminação das “contrapartidas”
O VNP também produziu um formulário que deve ser preenchido para o uso das instalações do Laboratório de Pesquisa em Aves. O formulário solicita, no item 4.5, que devem ser especificadas claramente “a(s) contrapartida(s) para o LPA-VNP-FMVZ/USP”. Não fica claro se essas “contrapartidas” se referem ao repasse de recursos financeiros oriundos dos excedentes de pesquisa, a quem elas seriam destinadas e para quais fins.
O Informativo Adusp Online solicitou entrevista ao professor Rennó. O docente chegou a agendar uma conversa por videoconferência, mas desmarcou-a no dia combinado, alegando necessidade de fazer uma consulta médica. A seu pedido, a reportagem enviou então as perguntas por e-mail, mas o professor não as respondeu.
Entre as questões enviadas, o Informativo Adusp Online perguntou:
“- O que é/são exatamente essa(s) ‘contrapartida(s)’?
– Em caso de não haver ‘contrapartida(s)’, o uso das instalações pode não ser liberado?
– Qual é o fundamento legal que o departamento está utilizando para estabelecer a requisição dessa(s) ‘contrapartida(s)’?”
A reportagem questionou ainda qual era a justificativa para o afastamento da professora Cristiane da coordenação do LPA.
Outra pergunta encaminhada diz respeito ao entendimento do professor sobre a vigência da Resolução 4.109/1994, que dispõe sobre o uso compartilhado das instalações do câmpus de Pirassununga.
O Informativo Adusp Online também enviou por e-mail perguntas sobre os temas abordados nesta reportagem ao atual chefe do VNP, Júlio Balieiro, que não respondeu à mensagem.
Em documento, Centro Acadêmico denuncia “ambiente abusivo” na FMVZ
A presença de situações cotidianas de assédio na FMVZ é sentida e também denunciada pelo corpo discente. Em documento encaminhado aos e às docentes, funcionários(as) e estudantes no contexto da greve estudantil do segundo semestre de 2023, o Centro Acadêmico Moacyr Rossi Nilsson (CAMRN) caracteriza a unidade como um local em que “a dinâmica de poder deturpada resulta em um ambiente abusivo, em que funcionários e docentes são punidos por expressar as suas opiniões, impedindo feedbacks sobre o ambiente de trabalho mais fortes e proteção das vítimas”.
O documento apresenta uma série de reivindicações, cujo atendimento os(as) estudantes consideram importante para preservar a qualidade da escola.
O ponto 8 do texto, intitulado “Discussão e fim da impunidade ao assédio moral e o abuso de poder”, é dedicado especificamente à questão do assédio.
Na avaliação do CAMRN, o ambiente em que atuam os(as) médicos(as) veterinários(as) é marcado por “forte hierarquização devido à origem elitizada e latifundiária”, com falta de equilíbrio de poder no local de trabalho e a existência de “questões que envolvem machismo e misoginia”. O documento ressalta que não se refere a nenhum caso específico na unidade, mas à “presença cotidiana deste tipo de comportamento no ambiente da FMVZ”, com base “em experiências compartilhadas por estudantes”.
“Entendemos que as situações apresentadas ocorrem com alunos, docentes e funcionários. A falta de medidas efetivas que busquem a solução e redução do assédio moral e abuso de poder são uma realidade da FMVZ”, prossegue o texto. O CAMRN defende que sejam tomadas medidas “com o objetivo de proteger as vítimas, sua saúde mental e permanência estudantil”.
Meses depois da greve estudantil, Diretoria da FMVZ não tomou providências
Em nota enviada ao Informativo Adusp Online, o CAMRN disse que “até o momento não houve nenhuma medida tomada pela Diretoria da unidade ou por chefes de departamento” em relação às reivindicações apresentadas. As únicas iniciativas que chegaram à unidade estão relacionadas a uma campanha contra o assédio lançada no ano passado pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP).
O centro acadêmico “observa que seria necessário mudar questões estruturais com a realização de protocolos eficazes nos casos que ocorram, priorizando a proteção da vítima e não do agressor”, além de “treinamento atualizado e possivelmente a construção de um RH com pessoal treinado, presença de profissionais psicólogos/psiquiatras que não possuam vínculo de docente na unidade”.
“Lembrando do histórico de violências que ocorreram na FMVZ, julgamos muito importante ressaltar a ineficiência da unidade em lidar com situações de violência sexual e moral, permitindo por diversas vezes que o agressor tivesse acesso à vítima ou [que esta tivesse] a necessidade de conviver por anos em sua presença, por muitas vezes sofrendo retaliação social (tanto em casos de funcionários, [como de] docentes e alunos)”, diz a entidade estudantil. “Portanto, julgamos de extrema importância reivindicar medidas que modifiquem a realidade atual que silencia as vítimas de assédio moral e sexual na FMVZ”.
O diretor da FMVZ, José Antonio Visintin, por sua vez, parece frequentar espaço diferente daquele dos(as) estudantes. Ao Informativo Adusp Online, o professor respondeu que não sabe se manifestar sobre a realidade descrita pelo documento do CAMRN “porque não recebi nenhuma denúncia por escrito de ninguém: alunos, funcionários ou docentes”.
“Temos uma Ouvidoria na FMVZ e temos a CIP [Comissão de Inclusão e Pertencimento]. Tudo o que recebo, imediatamente envio para a PG [Procuradoria-Geral da USP] para ver qual o passo a ser tomado”, prossegue.
“Temos comissões em andamento na FMVZ, inclusive uma de assédio sexual de um pós-graduando (ainda não temos resultados das apurações). Então é padrão na FMVZ, recebe a denúncia, imediatamente vai para a PG e depois implantam as comissões de sindicância ou PAD, independente [sic] de quem seja”, concluiu Visintin, em respostas enviadas por e-mail.
Também questionados pelo Informativo Adusp Online sobre o documento do CAMRN, o atual e o ex-chefe do VNP não se manifestaram.